Os milagres acontecem
Ele não gostava da rua. De jeito nenhum. Aprendera a sobreviver nesse mundo “selvagem”, mas acostumar-se a ele era difícil. Talvez até impossível. Esse mundo o repelida com sua indiferença e dureza. Havia muito pouca bondade nele. Pelo menos, para aqueles como ele. Os gatos de rua desbotados: habitantes de porões, lixeiras urbanas e outros “lugares sórdidos”. Esses lugares não tinham nada em comum com o paraíso felino, mas de certa forma eram semelhantes: eram quentes, abundantes em comida e, até certo ponto, acolhedores.
Ele não gostava da rua, mas tinha que se reconciliar com o fato de que era um filho das ruas.
Ele se encontrou ali sendo apenas um gatinho, que por alguma razão havia sido jogado no lixo. À noite. Envolto em uma sacola. Não deveria ter sobrevivido. Mas milagrosamente ele sobreviveu.

Esse foi o primeiro milagre em sua vida, após sua primeira traição. Mas então os milagres cessaram, e as traições aumentaram. Ele já não confiava nos humanos.
Eles o haviam privado de felicidade, amor e carinho. Cada dia o persuadiam de que para alguém como ele não havia lugar nem mesmo na rua. Era um pária, embora nunca tivesse feito mal a ninguém. Batiam nele, expulsavam-no, gritavam e lançavam pedras. Doía. E quando a dor acalmava gradualmente, parecia ainda mais doloroso e injusto devido à crueldade e à injustiça.
Em sua mente só havia uma pergunta: POR QUÊ?
Ele sabia que nunca encontraria uma resposta. Uma pena.
É o destino viver, mas não aproveitar a vida. Respirar, mas não sentir alívio.
Às vezes os pensamentos cruzavam sua mente: “E se…”. E se colocasse um ponto final em sua existência sem sentido? Jogar-se sob um carro e deixar de ser. Não ser amado, ser um pária, ser um gato de rua. É tão simples.

Mas no último momento, o instinto de sobrevivência se ativava, e uma voz interior perguntava com ironia: “Você quer dar-lhes prazer?”. Não, ele não queria dar-lhes o gosto àqueles que tentavam destruí-lo deliberadamente e levá-lo a essa simples decisão. Ele ia viver. Embora doesse. Contrariando o bom senso e desafiando todas as mortes. Porque sua existência devia ter algum sentido. Tinha que encontrá-lo, pois, no fundo de sua alma atormentada, ele ainda acreditava na bondade, nas pessoas, nos milagres.
Afinal, foi a um milagre que devia o fato de estar vivo. Então devia viver. A todo custo e apesar de tudo. Mesmo que não gostasse da rua.
A rua… Ou talvez não fosse apenas a rua? Talvez fossem as pessoas que a preenchiam?
Durante o dia, ele tentava não cruzar o caminho das pessoas. Aqueles olhos frios não o notavam, e se o faziam, tornavam-se “selvagens” e “ferozes”. Como este mundo de rua. A noite era diferente. Havia menos gente na rua, o que tornava mais fácil para ele se esconder para não ser visto. Não ser notado. Para que não pudessem descarregar sua ira sobre ele. E também a chuva. Ele nunca gostou de andar molhado, mas depois começou a gostar. Porque as pessoas más, escondidas sob guarda-chuvas, corriam para onde estava quente e seco. Para casa. Lá onde ele nunca esteve, porque a rua não tem nada a ver com um lar. Corriam sem lhe dar atenção, e se o faziam, não lhe faziam nada. Simplesmente não se importavam. E ele, nesses momentos, se sentia como o rei das ruas. Molhado e sujo, caminhava com a cabeça erguida, sem sentir medo. Por um momento, parecia até que este mundo não era tão desesperador. Parece que é possível passar por alguém e não pisar em sua cauda, não chutá-lo no estômago, não agarrá-lo pelo pescoço e jogá-lo no asfalto.

Mas isso não ocorria frequentemente. Só durante a chuva e à noite. E no restante do tempo, tinha que sofrer e suportar. Não importa, ele era forte. Ele conseguiria. Ainda continuava acreditando em milagres. Embora cada dia um pouco menos. Porque as pessoas matavam aquela fé nele. Pisoteavam, cuspiam nela, a rasgavam. O que eu fiz a eles?
Ele se surpreendeu muito quando uma jovem se aproximou, o acariciou atrás da orelha e deixou diante dele um prato de plástico com algo que cheirava delicioso.
Ele viu como ela vinha em sua direção, até ouviu como respirava ansiosa.
Poderia ter fugido antes que ela se aproximasse o suficiente, invadisse sua zona de conforto pessoal, perturbasse sua tranquilidade… Mas não o fez. Por quê? Ele era forte e estava acostumado a suportar. Especialmente porque era tarde e havia menos gente má na rua.
Ah, aquele aroma. Ele entendia que cheirava a peixe: aquele cheiro ele havia captado com seu nariz muitas vezes e o encantava, ficando como que hipnotizado, até que as pernas toscas de alguém em botas ou sapatos o expulsavam do balcão de peixe. Nunca havia comido peixe fresco, apenas aquele que já não estava em seu melhor momento. Nem de perto… E também não cheirava igual. A maioria das vezes nem cheirava.
Mas ele precisava comer, e comia. E ali estava, diante de seu focinho, uma fresquinha peça de peixe, daquele mesmo balcão.
Ele cheirava a peixe. Levantou os olhos com cautela em direção à jovem, e se surpreendeu com o quanto eram amáveis: nem um pingo de maldade. Nada de animal ou selvagem. Eram olhos de uma pessoa. Não, corretamente dito com maiúscula: Pessoa. Muito raramente encontrava pessoas assim em seu caminho. Melhor dizendo, nunca as encontrava. Apenas as via de longe. Como alimentavam outros, gatos de rua como ele.
Vocês pensam que ele estava com ciúmes? Não. Ao contrário, se alegrava que existissem pessoas assim.
E agora ele tinha a oportunidade de se cruzar com essa Pessoa. Até se esqueceu do peixe. Seus olhos o comoveram profundamente. Os olhos de uma Pessoa. Desapareceram rapidamente. Dissolveram-se na escuridão crescente, lembrando-lhe de sua presença apenas com o som dos saltos no asfalto. A jovem o acariciou mais uma vez atrás da orelha, depois se levantou e foi embora, como se nunca tivesse estado lá. Como um sonho lindo.

E agora ele acordou. Ficou sozinho com seus pensamentos, impressões, e o peixe.
O peixe! Ele tinha muita vontade de experimentá-lo, mas uma estranha indecisão o impedia de fazê-lo. Temia que não gostasse do sabor. Sua vida já estava cheia de amargura. Não queria que aumentasse. E se? E se esse peixe fosse como o que deram a um de seus amigos em desgraça há um mês? Ele o comeu avidamente, sem querer compartilhá-lo, e pela manhã o levaram as pessoas. Frio e morto. Ai, Vaska…
Ele queria comer, mas o medo de dar prazer àqueles que estariam genuinamente contentes com sua morte era mais forte que a fome. Ele cheirou. Peixe. Cheirava a peixe. Nada nele era repulsivo. Ao contrário, o atraía, implorando que ele o comesse e ficasse pelo menos cem ou duzentos gramas mais feliz. Quanto peixe haveria ali.

E se fosse outra traição? Pensamentos sombrios não o deixavam em paz. Mas também o inquietava a fome.
Em confirmação disso, algo roncou em seu estômago. Talvez pelo aroma embriagador do peixe e a antecipação da satisfação, ou talvez por outra coisa. A saber, de fome e a incompreensão de por que ainda não havia comido aquele peixe. O que estava esperando? Embora aquela pergunta não fosse correta. Ele não estava esperando nada. Simplesmente não queria que o milagre terminasse: viver aquele momento emocionante pela segunda vez em sua vida. Pois era simplesmente um consentido do destino. Coma aquele peixe, e não haverá mais milagres.
Não queria que aqueles olhos amáveis e incrivelmente bonitos desaparecessem de sua vida para sempre.
Olhos… Não como todos os outros. Não podiam trair. Pela primeira vez em muitos anos, ele confiou nas pessoas. Não em todas, em um ser humano específico. Uma jovem que ele nunca havia visto ali antes, e que nunca o havia visto. Isso acontece. No fundo de sua alma, que se havia quebrado em centenas, milhares, não, milhões de pequenos fragmentos, algo começou a se mover. Algo dentro dele começou a viver e reviver. Essas pequenas peças, sem cola ou outra “química”, começaram a unir-se firmemente em um todo. Dentro dele, sentia-se quente e bem.
Vivia e se regozijava. Com o quê? Simplesmente. Apenas porque havia sido notado.
Não passaram por ele. Acariciaram-no. Sujo e desbotado. Acariciaram-no, e não franziram o nariz. Não torceram a cara. Fizeram com ternura e amor. Apenas alguém verdadeiramente humano poderia fazer isso. Respirava e não conseguia encher os pulmões. O ar fresco da noite, privado dos gases de escape e da fumaça de cigarro pela escuridão, trazia alívio. E também o cheiro do peixe. Peixe fresco, algo que nunca havia comido.
Assim, os milagres acontecem.
Então, ele devia comer. Quando voltaria a ter uma oportunidade assim?
Primeiro, lançou-se sobre ele, como um rato tentando escapar de suas garras afiadas.
Depois entendeu: não iria escapar e começou a comer com deleite. A noite estava à frente e ele não tinha pressa para nada.
Ele comia e agradecia mentalmente aqueles olhos humanos. Os milagres acontecem. Uma pena que com pouca frequência. Mas acontecem. Agora ele sabe disso com certeza.